sábado, 10 de maio de 2008

“NUNCA HOUVE UM BAR COMO O BACANA”

Quase todo cronista já escreveu sobre seu bar de coração. Todos falam dos drink´s bem servidos, do atendimento solícito, do garçom gente fina, dos freqüentadores descolados, das intermináveis bebedeiras que acabavam em letras de música memoráveis, enfim, de tantas histórias românticas que viraram lenda.
Mas nunca li a respeito de um bar que tinha tudo para falir em um mês, mas durou tantos e tantos anos primando pelo improvável: a higiene.
Era o caso do “Bar Bacana”. Claro que o nome não era esse. Eu seria ingênuo em expô-lo dessa forma e não esperar nenhuma ação judicial por danos morais.
Bares assim existem aos borbotões e esse só não é mais um deles por que eu o conheci “in loco”.
Desconheço o tempo em que o Bar Bacana permaneceu de portas abertas, mas posso afirmar que durante décadas ele foi o porto seguro de muita gente.
E por que o Bacana era diferente?
Porque ali se via coisas que normalmente só se vê nas comédias de costumes da televisão. Histórias que mereceriam um livro, mas que por pura falta de espaço terei que selecionar apenas algumas que envolveram pessoas de meu círculo de amizades e que são fontes fidedignas da verdade.
Nem todo alcoólatra que conheço começou sua vida de dedicação à manguaça nos balcões desse estabelecimento comercial, mas um dia, indubitavelmente, passou por lá.
Aliás, esse bar era a prova mais inconteste da ineficácia dos órgãos de defesa do consumidor da época. E até dos órgãos que fiscalizavam a venda de bebidas alcóolicas a menores. Suas portas nunca terem sido fechadas é sinal de que ou os órgãos fiscalizadores inexistiam ou simplesmente faziam vista grossa, já que seus próprios funcionários deviam freqüentar o local.
Por mais que se contestasse o nível de higiene do bar, não se deixava de dar pelo menos uma passadinha por lá, só para ver como andavam as coisas.
Para que se tenha uma vaga idéia da proporção do que falo, imagine que o médico mais bem conceituado da cidade, aquele que fez a maioria dos partos de toda uma geração e que era considerado o médico de todas as famílias, não deixava de passar por lá para tomar seu cafezinho de meio de tarde.
Numa dessas tardes, ele adentrou ao estabelecimento e deu de cara com o pai de um amigo meu prestes a saborear uma suculenta e requentada esfirra de carne. Para não perder a piada retirou o salgado das mãos desse senhor sob o pretexto de que deveria prová-la antes que ele pudesse, de alguma forma, estar ingerindo algum tipo de alimento nocivo à saúde. Como médico de sua família era seu dever zelar pelos pacientes. Tudo isso aconteceu na frente do dono do bar que ria compulsivamente.

Uma das tradições do Bacana eram as “farmácias”, que para quem não sabe era uma mistura de tudo o que havia de pior em termos de álcool degustável. Era uma espécie de coquetel com sabor de gasolina que servia única e exclusivamente para embebedar toda uma geração de infantes ávidos por um belo porre. Se não me falha a memória o drink era feito com doses de Fogo Paulista, Cherry, Pepper, Conhaque, Campari e Martini. E ficava marrom com aparência de combustível.
Nunca tive o “prazer” de degustar esse néctar dos deuses, mas quem provou diz que o efeito é quase imediato.
Aliás, seu efeito era tão previsível que embaixo do balcão havia um balde com serragem para ser usado sob o vômito dos candidatos a manguaceiros. Parecia um pit stop da Ferrari: mal o vômito caia no chão já havia alguém com o tal balde e um rodo na mão a espera do momento certo de limpar o chão. Afinal, era preciso manter um ambiente salutar.
E salutar era mais que um adjetivo, era uma meta do bar! A qualquer sinal de sujeira, havia sempre alguém para eliminar o foco de bactérias.
Normalmente esse serviço era feito pelo próprio dono e com um único pano de prato que ficava acondicionado ao redor de seu pescoço durante o dia todo. O mesmo pano que enxugava os pratos secava as mãos e o suor da testa. E o balcão... As mesas... As cadeiras... Os talheres...
O Bar Bacana era o único lugar no mundo que servia X-réptil, apelido carinhoso do X-salada, uma das especialidades da casa. Tudo porque, reza a lenda, que o Batuta encontrou um rabo de lagartixa dentro do lanche. Ao reclamar com o dono, foi surpreendido com a atitude do mesmo, que surpreendentemente, retirou o organismo estranho com as próprias mãos e devolveu o lanche para o cliente que não teve alternativa a não ser terminar a refeição. Afinal de contas, ele estava no Bacana, e aquilo não era novidade para ninguém.
Fato semelhante aconteceu com o Yurão, que percebeu uma perna do que parecia ser também uma lagartixa, boiando na sua vitamina de frutas. E ele não ousou se recusar a jogar o líquido fora, já que havia bebido mais da metade do concentrado. Apenas retirou a perna da pobre lagartixa.
Baratas, aquele inseto onívoro e asqueroso, era tratado com o mesmo respeito com que os hindus tratam os elefantes, afinal, não era qualquer barata que suportava viver num ambiente tão insalubre. A parte baixa e interna do balcão era reservada a elas, para as verduras, frutas e afins. Por vezes, “uma meia dúzia de três ou quatro” delas saía para uma aparição relâmpago. Só para provar que o bar continuava como sempre foi.
Por respeito ao proprietário, os clientes mais assíduos, costumavam vomitar do lado de fora, mas todo mundo sabia que aquele resíduo vomitório tinha origem no estabelecimento ao lado.
Nos bons tempos, maionese e ketchup não vinham em saches hermeticamente fechados, eram oferecidos junto com os lanches em bisnagas plásticas, geralmente sem tampas e conservado em geladeiras. Menos no Bacana, que as deixavam em cima do balcão até que a camada superior da maionese começasse a ficar num tom de amarelo mais forte. Se você precisasse ir ao médico por conta de uma diarréia, uma das prováveis perguntas era se você havia comido alguma coisa no Bacana.
Ainda assim, o X-churrasco do lugar é referência de qualidade até os dias de hoje. Pude experimentar e posso garantir que em termos de sabor era realmente gostoso.
Pessoalmente nunca presenciei nada que fosse totalmente fora do comum, mas me recordo de um fato que não me sai da memória: o banheiro do Bacana.
Comecei a namorar a Hellen justamente na época em que minha geração começou a freqüentar o local, e como o ambiente, apesar de “familiar”, não era o mais adequado para se levar alguém a quem se queria causar boa impressão, evitava até passar em frente para não expor minha companheira aos jatos de vômitos que costumavam sair de dentro do bar.
Assim mesmo, numa das poucas oportunidades que tive de entrar no local, fiquei impressionado com o aposento destinado às necessidades fisiológicas dos clientes.
De bexiga estufada fui obrigado a procurar o sanitário para sanar minha vontade incontida de “tirar uma água do joelho”. Pela primeira vez na vida perdi a vontade de mijar!
Aquilo era uma visão do inferno! E se não fosse o próprio inferno, era com certeza o caminho mais curto para se chegar lá!
Era preciso descer uma escada em “L” para ir até ele e já na metade do caminho seus degraus estavam molhados. O cheiro de jaula era perceptível logo no começo da escadaria.
A cada degrau que se descia o medo tomava conta do pensamento daquele que desconhecia o destino final daquela verdadeira jornada pelo inóspito.
Senti um frio na espinha quando percebi que estava chegando ao meu destino e fechei os olhos para que a primeira visão não me ofuscasse a vista. Quando os abri me deparei com o portal do umbral! Nada pode ser mais nojento do que aquilo!
Imagine um cubículo de 1,5 x 1,5 metro, com as paredes de fundo azul sanatório, totalmente rabiscadas, inclusive com pintura a dedo (se é que fui claro), onde a iluminação era feita por uma lâmpada de geladeira, uma descarga daquelas de cordinha emendada com barbante, que não funcionava (para não gastar água) e um cesto de lixo cheio de papel boiando!
Isso mesmo! Papel boiando! Pois teve gente que desencorajado a mijar no vaso optou por um recipiente menos repugnante: o cesto de lixo! E o papel que boiava era de um tipo estranho. Vinha com notícias e fotografias. A marca mais provável era “Notícias Populares”.
O chão era forrado com uma mistura de serragem com jornal velho e água! Duvido que fosse água! Se você fosse campeão de xixi a distância ainda dava para arriscar mijar de longe mesmo, senão tinha que encarar o lodo a sua frente.
Temi por olhar dentro do vaso sanitário, mas a visita não seria completa sem essa visão complementar.
A privada estava tão cheia de massa fecal (merda que se preza não encara aquilo), que havia até partes que ficavam para fora da água! Não vi nada parecido nem no banheiro do Morumbi em dia de clássico!
Meu pinto se recusou a sair de dentro da calça. E mesmo que saísse, minha bexiga inibida se negaria a funcionar! Juro que tomei um banho quando cheguei a minha casa.
Atordoado, voltei para minha mesa, pedi a conta e fui embora. Nunca senti tanta saudade do meu banheiro!
Uma década depois voltei ao bar e, por intermédio de um amigo que era Comandante do Corpo de Bombeiros, descobri que o bar possuía um Toillet VIP. Mas só senhoras e clientes muito importantes tinham acesso a ele. Nele havia até papel higiênico e espelho!
Com tudo isso, é pouco provável que alguém tenha saudades desse bar. Mas não há na cidade quem não tenha uma história hilariante para contar a respeito de algo que tenha acontecido dentre aquelas paredes imundas de gordura e quadros dos times do Palmeiras.
O passado do Bar Bacana está guardado na memória de todos que por lá passaram. Sua “boa” fama se deve a seu jeito único de ser. Ao atendimento de seu proprietário que nunca se queixou das brincadeiras e sempre tentou fazer o melhor por seus clientes, mesmo que esse conceito de melhor seja um pouco diferente do usual.
Claro que nem tudo era sujo! Durante o dia até que era limpinho. O problema era quando havia a superlotação. E isso geralmente ocorria aos fins de semana, durante a noite, quando o bar entupia de homens.
Por tudo isso e mais um monte de motivos estranhos é que posso afirmar: “Nunca houve um bar como o Bacana”.

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