Oficialmente nem era uma trave de futebol. Eram dois mourões fincados no chão com um bambu na horizontal para sustentar uma das pontas dos varais, que mamãe usava para estender as roupas lavadas à mão.
Mas isso não importa... Para mim, sempre serão as traves do meu gol particular. E não eram quaisquer traves!
Na minha fértil imaginação infantil, aquelas eram traves mágicas, que só eu possuía e enxergava. Gostava de jogar sozinho no quintal. Acompanhado, só na rua com a turma.
Não era apenas a trave de um fundo de quintal na Rua Carlos Gomes, 402! Eram as traves do Morumbi! Do Maracanã também! Do Mineirão, do Pacaembu, da Vila Belmiro...
Onde quer que meu time imaginário jogasse as traves iam junto.
Meu sonho, como de todo garoto nascido em terras brazucas, era ser “jogador de futebol”!
E se na prática não o fui, pelo menos naquele pequeno espaço de tempo que um dia abrigou minha tenra infância, fui um dos melhores! Mas só eu sabia disso...
Aliás, eu e meus amigos imaginários e companheiros de equipe. Não por um acaso Waldir Peres, Getúlio, Oscar, Dario Pereira, Theodoro, Renato, Zé Sérgio e o mais legal de todos: Serginho Chulapa, com quem eu dividia o poderoso ataque do tricolor paulista!
Nosso time era invencível! Ganhamos o campeonato paulista inúmeras vezes (normalmente uma vez por semana). O campeonato nacional então... Perdi a conta do número de vezes. Mas não me lembro de nenhum título da Libertadores ou Mundial Interclubes. Naquele tempo, os times brasileiros não costumavam vencer esses torneios já que, no tapa, nunca fomos páreo para os argentinos.
Eu me concentrava naquilo que assistia e o que eu via não ultrapassava as fronteiras do território nacional. A não ser em época de Copa do Mundo.
Durante esse período de mais pura inocência acompanhei duas Copas: Alemanha 74 e Argentina 78. E é claro, ao contrário do escrete canarinho, fui campeão nas duas edições! E artilheiro, diga-se de passagem...
Aliás... Fui campeão das mesmas Copas pelo menos umas cinco vezes... Por ano!
Meu uniforme oficial só era usado em ocasiões muito especiais. Normalmente finais de campeonato. E consistia numa camisa branca com listas, número e distintivo pintados com canetinhas hidrocor.
Lembro que um dia o Guarani de Campinas se tornou campeão brasileiro, e após o término da competição recebi um convite “irrecusável” para defender as cores do alviverde. Como essa era uma ocasião especial fui obrigado a sacrificar mais uma camiseta branca, para desespero da Dona Célia. E tome canetinha hidrocor verde na danada!
Com o Guarani fui campeão de tudo quanto foi campeonato, inclusive sendo convocado pela “enésima” vez para defender a seleção brasileira nas mesmas Copas da Alemanha e da Argentina.
Mas o destino e a fértil imaginação me levaram de volta ao São Paulo onde encerrei minha vitoriosa carreira.
E minha coleção de troféus se resumia a um único exemplar! Ele era lindo! Enorme, quase do meu tamanho! Claro, tudo no campo da imaginação.
No mundo real a taça não passava de um vidro de perfume da Avon que eu emprestava de minha mãe sem seu consentimento. Normalmente nosso time erguia a taça dentro de seu quarto, para não correr o risco de derrubar o vidro no chão e ouvir um “monte” da Dona Encrenca...
Essa situação só terminou quando o perfume acabou e eu pedi o frasco para brincar. Acabou até mais rápido do que ela imaginava, pois para que isso acontecesse o mais depressa possível, eu costumava derramar o líquido num cantinho escondido do quintal, da vizinha, para que o cheiro não me delatasse.
Meu Morumbi imaginário era um quintal de terra cheio de irregularidades e obstáculos que atrapalhavam o desenvolvimento do meu melhor futebol.
Havia um limoeiro que era uma espécie de volante matador. Sempre parava as jogadas... Quando a bola batia nele, geralmente ficava enroscada em seus galhos cheios de espinhos. Meus braços viviam arranhados pelas tentativas de retirar a pelota de suas garras malditas...
Às vezes, sem querer, eu marcava golaços de placa tabelando com a árvore. Mas para isso a bola tinha necessariamente que bater bem forte em sua base.
Outra coisa que atrapalhava era o fato do terreno ser levemente em declive, já que morávamos numa ladeira. Cansei de receber passes açucarados de alguém que não existia! Devia ser o tal Sobrenatural de Almeida, que o Nelson Rodrigues tanto falava. Era só tocar a bola para cima que a mesma voltava para baixo, quicando num ou outro pedregulho.
Bem ao lado do gol havia um ranchinho feito com uma telha velha de metal. Nele, o Seu Ivo, meu pai, guardava uma porção de tranqueiras que vez ou outra eu derrubava com meus potentes petardos de direita. Quando a bola batia na telha com força o barulho chamava a atenção de minha mãe que lá da cozinha gritava: “Afonnnsooo, cuidado com essa bola!”.
Aposto que, escondida atrás do vitrô, ela deve ter acompanhado várias finais de Copa do Mundo sem ao menos saber o que se passava.
Esse mesmo rancho serviu de abrigo para dois animais de estimação que sofreram muito em minhas mãos, ou melhor, em meus pés!
Quica, uma preá que ganhei do Seu Manuel, pai do Lê, e o Cocó, um frango que ganhei numa barraca de pesca da festa junina de minha escola.
A Quica, sempre escondida em seu buraco, pouco se aventurava a sair de sua toca, mas quando o fazia passava correndo de medo da bola e gritando: “Qui, Qui, Qui!” A verdade é que poucas foram as vezes que a acertei, mas me lembro de um dia que a deixei atordoada!
Um dia ela apareceu morta no quintal do vizinho, sem arranhões nem sinal de violência. Foi um choque para um garoto de 8 anos que acabara de perder seu primeiro animal de estimação.
Se a Quica não sofreu muito comigo, o mesmo não posso dizer do Cocó...
Quando ele chegou, ainda um pintinho, o criávamos dentro de casa, numa caixa de papelão. Mas de tanto ser bem alimentado o franguinho cresceu e virou um baita frango! E como já não cabia mais na caixa, o jeito foi colocar o bicho no famoso ranchinho.
Como ele era um frango domesticado - se é que se pode dizer assim - com o tempo ele foi sendo criado solto no quintal, a mercê de meus chutes, nem sempre precisos de direita.
Incontáveis foram as vezes que via penas do Cocó voando para o alto montado em minha bola de futebol! Ao mesmo tempo em que era engraçado era de dar pena do pobre bichinho... Pena, no duplo sentido da palavra!
Um dia o Cocó também se foi... Ou melhor, “foram” com ele!
Como sempre aconteceu, vivíamos uma época de vacas magras lá em casa. Só que daquela vez a vaca estava anoréxica! E o pobre do Cocó, bem gordinho, virou almoço e jantar na casa dos Elleros.
Para não ferir os sentimentos meu e de minha duas irmãs, foi nos dito que o frango estava doente e precisava ser sacrificado para não passar doenças para a vizinhança... Cheguei a pensar que o pobrezinho sofria de males causados pelo meu futebol.
Mas o espetáculo tinha que continuar!
Em dias de chuva eu ficava enfurnado dentro de casa esperando uma oportunidade para descer ao quintal e bater uma bolinha. E se caísse uma chuvinha eu também encarava, até ouvir o berro da minha mãe...
Entre uma chuva e outra, quando pintava um solzinho maroto, o terreno era disputado a tapa entre eu e mamãe. Eu só queria ganhar mais alguns campeonatos imaginários e ela colocar um pouco de roupa para secar.
Depois de muita discussão chegávamos a um acordo que consistia em roupas penduradas nos primeiros varais e um espaço para eu chutar minha bola com muito cuidado no gol.
O problema é que logo atrás do gol ficava uma parede e quando eu me empolgava e chutava com um pouco mais de força, a bola batia nela e voltada sem direção.
Nem sempre eu conseguia interceptá-la e era obrigado a contar com a sorte. Até que um dia a sorte deixou de sorrir para mim...
Terreno molhado, bola suja de barro, o craque dribla a zaga inteira do Palmeiras e chuta para o gol! Tá lá! No fundo da rede!
Traduzindo: bola suja de barro bate com força na parede e volta direto para um lençol branco do varal, que estufado, acolhe com carinho o corpo desesperado do jogador que foge para a rua e só volta algumas horas depois com o fiofó na mão.
Quando voltei para casa minha mãe não estava e aproveitei para conferir o estrago mais uma vez. Como que por um milagre o lençol estava limpo de novo! Ao olhar para a escada vi minha mãe com aquela cara que quase toda mãe faz numa hora dessas: primeiro cara de séria e depois um sorriso acolhedor que significava perdão. Ela sabia que meu maior castigo fora as horas que passei fugido e com medo.
- “A culpa foi da parede, mãe...”.
Essa parede me dava a oportunidade de enfiar o pé na pelota sem um
pingo de dó! Como ela era bem alta o risco de mandar a bola longe era minimizado, porém não eliminado.
Quando isso acontecia era só pular o muro de dois vizinhos e cair na vila que ficava em paralelo com meu quintal.
Quem não nutria uma admiração muito forte pelo meu dom esportivo era o Peninha, morador da casa que fazia fundos com o meu pequeno estádio.
Por uma infeliz coincidência a parede em questão era justamente a do seu quarto e pior, a cabeceira de sua cama ficava recostada nela!
Até aí, tudo bem, não fosse por um pequeno detalhe: o pobre do Peninha era garçom e trabalhava até de madrugada. Portando, costumava dormir até mais tarde.
Só que meu turno de boleiro começava por volta das 8 horas da manhã!
Imaginem a cena do coitado tentando dormir e ouvindo no seu ouvido o “Bum!” interminável de minhas boladas...
Ele até pedia com educação para que eu desse um tempo para ele descansar, mas, meia hora para mim já era muito! Eu tinha que ir para a escola na parte da tarde e só tinha a manhã para jogar no quintal. O fim da tarde era ocupado por atividades coletivas no meio da rua.
Até que um dia, o Peninha chamou meu pai e eu para conhecermos sua casa e seu quarto. Foi então que percebi que minha perna direita era uma verdadeira arma! O reboco da parede estava todo caindo e vez ou outra atingia a cama do infeliz.
Censurado por meu pai fiquei mais de uma semana sem jogar bola de manhã, mas aos poucos fui convencendo-o de que iria chutar bem fraquinho. E ele foi me liberando. Claro que duas semanas depois o pobre Peninha já estava ouvindo o “Bum!” de novo.
Sorte dele que eu só usava bola dente de leite, que para quem não sabe são aquelas bolas de plástico um pouco mais espessas. Bola de capotão só tive uma e demorei para colocá-la para ralar na terra.
Como era um produto longe das possibilidades financeiras de meus pais, eu a tratava como se fosse um bicho de estimação. Vivia pedindo sebo no açougue e levando para casa para derretê-lo e passá-lo no couro da bola. Diziam que isso aumentava sua vida útil!
Mas como tudo nessa vida é passageiro, um dia tivemos que deixar a casa. E para trás deixei mais do que meus sonhos de ser um craque de verdade. Deixei minhas mais puras e ingênuas fantasias, que por anos a fio permearam minha infância.
Esses momentos foram deliciosos demais para se esquecer. Cada gol de placa, cada chute colocado, cada champela de dedo arrancada, tudo ficou guardado em minha memória.
Aquelas manhãs inesquecíveis em que eu conversava com Deus sem saber, me fizeram uma criança feliz, mesmo sem ter acesso a brinquedos caros, que nunca me fizeram falta.
Eu tinha meus amigos da rua que dinheiro nenhum compra! Tinha meus amigos de escola com quem cresci junto, durante quase uma década! Tinha minha companheira, a bola, que me acompanhava calada em meus sonhos mais íntimos! E tinha meus companheiros imaginários, que me faziam companhia quando os de verdade estavam na escola.
O quintal do número 402, da Rua Carlos Gomes, ainda deve guardar um pouco da energia que lá deixei cada vez que comemorava um gol dando um soco no ar, tal qual “o melhor de todos os tempos”. E do grito da torcida que eu imaginava imitar a perfeição.
Mesmo sabendo que o Fabian me espiava pelo buraco do muro de sua casa e depois contava para todo mundo que eu parecia um maluco jogando futebol solitário, nunca deixei de sonhar acordado. E nunca me esqueço dos passes de primeira que trocava com o Serginho Chulapa na entrada da grande área!
Era bom sonhar e acreditar que era tudo verdade...
sábado, 10 de maio de 2008
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