Estou só. Ou melhor, estou sozinho. Não fui abandonado, nem fugi de casa. Apenas estou momentaneamente sem companhia. E pior, sem nada para fazer! E quando não se tem nada para fazer, o melhor a fazer é “nada”.
Assim sendo, resolvi fazer nada numa sala de bate-papo da internet.
Sem inspiração, não sabia nem em que tipo de sala entrar, tampouco que nick usar.
Quando internet me era uma grata novidade, tudo era mais fácil. Agora nem inspiração para nick eu tenho.
Bem que alguém podia me ligar para tomar uma “breja” bem gelada na Toca do Caranguejo...
Resolvi repetir o que já cansei de fazer tempos atrás: entrar no bate-papo só para esculachar.
Mas hoje não estou inspirado...
Quem sabe na hora me vem uma inspiração e dou boas risadas...
Apesar de ser taxado de “viado” pelos amigos mais próximos, pelo tipo de situação que crio, acho bem divertido entrar em salas de bate-papo como se fosse uma mulher. É impressionante o que nós, homens, fazemos por uma boa sacanagem.
Por pura falta de inspiração me utilizei de um nick mais manjado que maconha do Maranhão: “Kzada carente”
Agora preciso criar um perfil e ser coerente com seu conteúdo para que eu pareça o menos falso possível, já que ali ninguém é totalmente honesto.
Pois bem... Serei ruiva dos cabelos longos e encaracolados (iguais aos meus, menos na cor) assim fica mais fácil se uma possível conversa sobre cabelos pintar. Terei 36 anos, dois a menos que eu, para saber sobre o que estou falando. 1,70 metros para parecer cavala, seios médios e bunda normal, para não parecer falsa e pretensiosa, olhos castanhos, tatuagem na nuca para parecer ousada, uma florzinha básica. Papo de tatoo me é bastante familiar, tenho três.
Para não parecer burra, nem culta serei uma mulher que fez até o segundo grau. Moro aqui mesmo na minha cidade para não entrar em contradições caso converse com alguém que conheça minha cidade.
Como sou casada e carente, preciso que meu marido seja um profissional que não pare em casa. Jogador de futebol daria a impressão que sou interesseira, mulher de policial botaria medo em alguns, vendedor... Isso! Meu marido é representante comercial de uma distribuidora de bebidas. Todo mundo sabe falar sobre bebidas!
Serei ousada sem ser vulgar, e difícil sem ser intocável. Pronto! Já me sinto uma adúltera perfeita.
Digito o código de segurança, enter, um tempinho para o sistema processar a informação e... Bingo!!!
“Kzada carente” entra na sala...
Envio um recado geral: Oie!
Demora um pouco até que alguém atenda ao meu clamor. Mais ou menos uns três “oies”.
“Herói do sertão” fala para Kzada carente: Oi gata! Td bem?
Vou respondendo o questionário padrão até ficarmos um pouco mais íntimos: “de onde vc tc? qtos anos? Como vc é?...”
Herói do sertão diz ser da capital, mas nascido em Sergipe. Trabalha com construção civil, mas ao contrário do que pensei imediatamente, não se diz peão de obra, é técnico em edificações.
Aliás, na net ninguém é pouca coisa. Todo mundo é bem de vida. Bonito, alegre, tem carro do ano, faz academia, ganha bem...
Nunca conheci ninguém desempregado, com o saco cheio da vida, com dívida no cheque especial... Assumidamente feio seria muita pretensão.
Meu “Herói” não era muito bom de papo, e percebendo que não me agradou, se encantou com “Estrelinha”.
“EtaCacetãoSô” entra na sala...
Esse apelou! Deve ser dos meus, veio para esculachar!
Provavelmente algum adolescente desprovido de pinto querendo se auto-afirmar. Conheço bem esse tipinho, já fui assim.
“Romântico” fala (reservadamente) para “Kzada carente”: “O amor está onde não existe o medo; e o medo, onde não existe o amor” (Gerald G. Jampolsky)
Que saco... Não suporto homem que fica com esse nhén, nhén, nhén, só para impressionar! Depois é aquela mesmice: sexo, sofá e futebol...
Mas como o mar não estava para peixe dei uma chance para esse babaca.
“Kzada carente” fala(reservadamente) para “romântico”: “Nossa! Assim eu apaixono... rs”
“Romântico” fala(reservadamente) para “Kzada carente”: “Não corra atrás das borboletas; plante uma flor em seu jardim e todas as borboletas virão até ela”(D. Elhers)
Fiquei pensando no “romântico”: o que leva um homem, se é que era um homem quem estava falando comigo, a se submeter à tamanha basbaquice? Será que ele pensa que está fazendo a sua “caça” se derreter do outro lado?
Provavelmente, assim como eu, uma mulher, salvo as ingênuas (ainda existe isso?), estaria gargalhando a respeito! Que papo furado...
Outra vez o questionário de praxe.
“Romântico” se dizia engenheiro de computação. Separado, dois filhos que moram com a ex, vive na ponte aérea, mas o correio deixas suas correspondências em São Paulo, no Santana. Ele não me pareceu má pessoa, mas, haja saco para agüentar tanta bajulação! Acho que sua ex o deixou por tédio conjugal. Se bem que ele dizia que ela não compreendia que seu trabalho exigia total entrega e muitas viagens. Algumas ao exterior, para capacitação. New York? Ele conhecia como a palma de sua mão! Estava lá quando as torres desabaram...
Senti pena desse coitado... Deve ser um recepcionista de hotel ou, quem sabe operador de tele marketing que não tem quem atender. O que um cara descolado estaria fazendo na NET 15h30min de um sábado ensolarado?
Fui cozinhando ele em “Banho Maria” para ver até onde chegava e não chegou a lugar nenhum. Tive que agüentar suas pérolas do romantismo por infindáveis trinta minutos. Até que estranhamente:
“Romântico” sai da sala...
Será que o gerente do hotel chegou?
Eu já estava quase clicando em sair quando recebi simultaneamente duas mensagens:
“Casado 42” fala para “Kzada carente”: “Oi minha linda! Pq tanta carência? Aqui é lugar de ser feliz! rs”
“EtaCacetãoSô” fala para “Kzada carente”: “OI GOSTOSA!”
Era só o que faltava...
Sabia que na verdade os dois só queriam me comer. Do jeito virtual, mas queriam me comer, isso eu não tenho dúvidas!
Decidi teclar com os dois ao mesmo tempo.
“Casado 42” veio com aquele papo agradável de conquistador barato. Daqueles que ganham sua confiança antes de te dar o bote. Usou a tática do psicólogo, quis saber minhas carências, minhas frustrações. E eu fui dando corda para ele se enforcar.
Depois de algum tempo ele iria se abrir comigo, dizendo que seu casamento era uma merda, que sua esposa já não o olhava mais como homem e sim como amigo, blá, blá, blá...
Já nosso porno-amigo-virtual se mostrou alguém bem diferente. Enigmático até certo ponto. Ao contrário do que transmitia seu nick, levava um papo mais agradável, bem humorado e aparentemente sincero.
Interessei-me mais por ele achando que ia conseguir tirar a maior onda. Esse tipo metido a esperto é o mais gostoso de avacalhar!
Como a conversa não rolava no reservado ouve um momento em que os dois começaram a se digladiar com palavras pela pobre donzela carente. Eu, a donzela em questão, a tudo assistia com um sorriso contido nos lábios.
O entra e sai de gente da sala era intenso e acho que não houve quem não metesse o dedo na conversa dos dois. Estava até ficando engraçado, com o povo tomando partido do que mais os agradava. Talvez pelo nick um tanto agressivo, “EtaCacetãoSô” ficou com menor número de defensores sendo constantemente chamado de “cacetinho da NET”.
Existem aproveitadores que até num momento desses querem passar a perna nos outros. Era o caso do “Moreno gostoso” que se aproveitou da briga dos meus amados para tentar me seduzir.
“Moreno gostoso” fala para “Kzada carente”: “Oi meu quindim de iá, iá...”
Porra... Quindim de iá iá?
Dei um pouco de atenção para o gostosão sem desviar a atenção do papo sinistro que rolava entre o Cacetudo e o Casado safado.
O “figura” veio com aquele xaveco manjado de garotão atlético, forte, bonito e rico. E num certo momento disse que queria me contar um segredo (lá vem...), mas só porque tinha “ido com a minha cara”(Que cara?)
Entre socos e bofetões virtuais, os brigões lembravam que eu existia e me mandavam doces mensagens de “espera eu acabar com esse otário que a gente conversa! Ainda não te esqueci minha linda”.
“Moreno gostoso” era um puta de um chato! Daqueles que te irritam de tanta vantagem que contam! Depois de alimentar minha curiosidade por um bom tempo ele resolveu contar o seu grande segredo! Achei que ele fosse me dizer que era mulher, mas não. Ele conseguiu superar todas as minhas expectativas!
O cara de pau teve a petulância de me dizer que era jogador de futebol! E não era qualquer jogador de futebol! Era internacional! Dizia-se titular da Fiorentina da Itália!
Ele só não sabia que estava falando com um homem que gosta de esportes e de se manter informado.
“Kzada carente” fala (reservadamente) para “Moreno gostoso”: “Xiii... então vc deve ser um perna de pau! Seu time foi rebaixado para a terceira divisão esse ano, né? Será que dá pra subir de divisão no ano que vem?”
“Moreno gostoso” sai da sala...
Inexplicavelmente o “Casado 42” abriu mão de minha pessoa e começou a flertar com “Graziella”, deixando de lado eu e o Cacetudo, que se voltou para o aconchego de minha companhia.
A partir daí, já cansado de chove e não molha, passei a dar atenção exclusiva para meu incauto de pinto grande, afinal, tinha acabado de lutar pelo meu amor! Que meigo...
Conversamos sobre o duelo, sobre banalidades e acabamos levando um papo bem amigável.
Não resisti a curiosidade de perguntar do porquê daquele nick tão ostentativo. A resposta foi óbvia, mas a origem era de uma mineira com quem ele havia saído e que havia dito a expressão que deu origem ao apelido.
Confesso que imaginei que o Cacetudo ia tentar fazer sexo virtual comigo a todo custo. Cheguei até a provocá-lo, mas surpreendi-me com sua atitude elegante de fazer de conta que não era com ele. O cara estava a fim de companhia mesmo!
E fugia as minhas provocações de uma maneira tão sublimemente discreta que me deixava irritada, ou melhor, irritado! Puts... Foi mal...
Entre um comentário e outro o tempo foi passando e ele foi me cativando como um amigo que precisa de alguma coisa e não quer falar. Comecei até a me estranhar, afinal eu estava ali para esculhambar com ele!
Mas alguma coisa me impedia de ser grosseira, eita..., grosseiro!
Não demorou muito para ele me dizer quem era. Seu nome era Miguel e sua história anônima, mas tão comum, me deixou sem coragem de revelar minha própria farsa.
Miguel era professor, tinha 48 anos e era viúvo. Perdera sua esposa havia quatro meses e ainda não conseguira se reerguer. Não saía de casa, pois não tinha vontade. Costumava sair de mãos dadas com a esposa mesmo depois de quase trinta anos de casado.
Tinha muito medo da solidão, mas não tinha coragem de levar outra mulher para a cama onde passara momentos felizes e infelizes ao lado de Dulce. Não sentia falta de mulher, sentia falta de “uma” mulher.
Ele usava a NET para não se sentir tão sozinho, já que, novo na cidade, não tinha muitos amigos. Filhos não tiveram, Dulce era infértil. Seus únicos amigos eram seus alunos, o mais velho com 12 anos. As companheiras de profissão não costumavam lhe dar muita atenção. Talvez pelo fato de ser o único homem a lecionar na rede pública daquela cidade, ser casado e já um tanto acima da idade de “abate”, as professoras não lhe dirigiam palavras informais, quando muito um cumprimento clichê.
À medida que eu lhe ouvia ele falava mais e mais à respeito de sua vida.
Percebi que se tratava de um homem de bem, que na solidão de sua casa vazia procurava na tela de um computador alguém que lhe desse algo tão valioso, e que às vezes deixamos de lado por puro egoísmo: atenção.
Miguel não queria um colo para satisfazer seus prazeres, nem alguém para dividir as fantasias mais obscuras que só o anonimato da NET é capaz de suprir. Miguel queria um “amigo”, no sentido mais genérico da palavra.
Com o apelido de “EtaCacetãoSô”, ele provavelmente buscava um pouco de humor para temperar a sua tarde vazia. Talvez, como eu, quisesse apenas se divertir, talvez tivesse medo de ser ele mesmo e espantar aquela horda de paspalhos, como eu, que contaminam as salas de bate-papo.
Atrás de um nick escandaloso se escondia um ser humano como qualquer outro. Com uma história anônima de dor, de solidão e de sei lá mais o quê! Uma história de alguém que só queria uma companhia e encontrou em uma “Kzada carente” a amiga que lhe faltava.
Senti-me um lixo! Não era justo continuar aquela farsa como também não era humano deixá-lo com a impressão de que o universo conspirara contra ele. Pensei em contar a minha verdade e tentar convencê-lo de que sua história me comovera, mas tive medo de magoá-lo.
Deixei isso para a vida, que já estava fazendo isso com extrema eficiência. Senti pena em deixá-lo para trás e ir cuidar de minha vida. Em dado momento me senti paternalista, ou no caso, maternalista, quando ele me pedia opiniões femininas à respeito de um universo que conheço tão pouco. Senti-me um pouco culpado por sua desilusão com a vida.
Deixei-o falar a vontade e essa conversa tomou rumos diversos. Eu apenas ouvia e me ressentia. Tentava achar uma brecha para me despedir, mas quanto mais ele falava mais eu me sentia momentaneamente importante e impotente.
Importante porque servia a alguém como um amigo e impotente por não poder ajudá-lo mesmo que fosse com um simples abraço fraterno.
Aquilo só teve um fim quando:
“EtaCacetãoSô” fala para “Kzada carente”: “Sabe... acho que vc seria o tipo de pessoa certa para eu me apaixonar de novo. Pena seres casada”
Aquilo já passara dos limites do justo. Correto ou não, só me restou uma única alternativa:
“Kzada carente” sai da sala...
sábado, 10 de maio de 2008
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