sábado, 10 de maio de 2008

“TRÊS HOMENS E UM FUSCA”

Ele nunca foi meu, mas era como se fosse. Ele não era só do Pavão, era de nós três. Meu e do Baixinho também. O Pavão só detinha a guarda, mas ele sabia que, para vendê-lo, precisaria de nossa autorização verbal.
E isso um dia aconteceu...
Ele se foi...
E com ele marcas de uma juventude que insiste em ficar tatuada em nossa retina. É só ver um Fusca da mesma cor que ficamos olhando, esperando por um aceno que nunca vem.
Queria apenas dar mais uma última volta naquele demônio das pistas!
Seu design já mostra o que ele é: um carro com alma! Diferente de todos os outros
Seu pára choques em formato de sorriso dá a mais perfeita expressão de que ele não é apenas um carro. Ele é “o carro”! Nem dá para acreditar que a idéia do pára choques foi do Hitler.
São os vira-latas motorizados! Ninguém fala mal de Fusca. Nem quando quebra.
O “Herbie”, como ficaram conhecidos carinhosamente todos os Fuscas depois do filme da Disney, era aquele amigo pobre, mas simpático, que é convidado a comparecer em todas as festas.
Nós também tínhamos nosso “Herbie”, o filho do Pavão. Um bólido de 1972, 1300, com volante de madeira.
Ele era marrom/coco, mas era um tom de cocô saudável. Nada parecido com aquele cocô de quem comeu algo que não está acostumado. Era um cocô consistente, cintilante!
O garotão chegou ao nosso convívio em março de 1988 e ficou até fevereiro de 1997.
Qual a nossa felicidade quando ele ganhou um adesivo oficial do primeiro “Hollywood Rock”! Era como se nosso menino tivesse feito a sua primeira tatuagem! Seu primeiro adesivo foi uma maçã verde, que o Pavão achou que era legal, mas nós não considerávamos aquilo coisa de macho, assim sendo, ignorávamos.
Dava orgulho passear com ele. Era realmente uma alegria ouvir sua buzina me chamar na porta de casa. Não era uma buzina, era um chamado!
- “Levanta bunda mole!!! Hora de passear!”

Na verdade nós é que o levávamos para passear. Era como se saíssemos
os três para levar o Totó fazer suas necessidades. E o danado não fazia feio não! Intimidava pela postura de pittbull. Era um vira latas com pedigree!
Tinha lá seus defeitos, claro! Mas nada de extraordinário, afinal todo carro, em dia de chuva, molha os pés dos passageiros...
O “Herbie” foi testemunha das nossas loucuras juvenis. Se esse carro falasse... Perdão! Carro não! O “Herbie” não era um carro, era um ser humano!
Era o quarto dos Cavaleiros do Apocalipse! Era nosso mentor espiritual, nosso guru! Ou como diria seu tutor: o dono da porcada!
Quando ele adoecia, os sábados não eram os mesmos. Parecia que alguém estava faltando na turma. Sem ele não tinha a menor graça.
E logo com três meses de convívio, um panaca tentou enrabar o coitado e o mandou para o pronto socorro. Sofremos juntos...
Foi nele que passamos os melhores sábados de nossas vidas. Foi nele que conhecemos os Ramones!
Um dia o Pavão apareceu com uma fita cassete de 60 minutos da Gradiente contendo uma coletânea com as melhores músicas dos Ramones. Gravadas pelo Vitão, que andou sentando no Fusca conosco de vez em quando. Mas o “Herbie” era meio temperamental. E fiel! Só conosco ele se sentia a vontade.
Nossas tardes de sábado eram meio pragmáticas, mas deliciosas. Lá pelas duas o “Herbie” pegava o Pavão, afinal era ele quem dirigia, ou melhor, segurava no volante! O “Herbie” já sabia o caminho sozinho... e tinha vontade própria.
Depois eles passavam me pegar e em seguida o Baixinho. Só então a tarde começava. Ouvíamos o primeiro lado da fita dos Ramones rodando com o “FUCA” pelas ruas do centro. Assim que o lado A terminava parávamos no trailer da Dalila.
Lá trocávamos a fita por qualquer outra. Sempre de rock and roll! A cada mês aparecia uma seleção musical diferente. A minha era sempre preterida, já que eu sempre tive um “gosto porco”, como diria o Baixinho.
Dizia ele que comprar um disco por causa de uma música já não era aceitável, comprar um disco por causa de nenhuma música era incompreensível!
Na verdade eram eles que não conseguiam acompanhar o meu bom gosto musical... Quando eles ouviram Gun´s and Roses pela primeira vez, meu disco já estava furado de tanto ouvir! Quando os introduzi ao universo metálico do Sepultura eles quase tiveram um piripaque! Acho que eu estava à frente do meu tempo e eles não sabiam...
Também... O que esperar de um baixinho que tem a coragem de comprar um disco da Donna Summer?
Passávamos a tarde ouvindo o “Herbie” cantar, afinal, quem cantava era ele, as fitas eram só um “karaôke”!
Ele foi minha segunda bateria! Minha primeira foi o sofá de casa, que eu destrui com as baquetas que improvisava roubando as grades de madeira do berço da Cau, minha irmã.
Com o “Herbie” eu tinha mais respeito. Acompanhava as músicas batendo com as mãos em sua lataria. Se o Carlinhos Brown descobrisse o “Herbie” a música baiana nunca mais seria a mesma!

Naquele tempo eu ainda era fraco para bebidas, e quando exagerava na dose era ele quem carinhosamente me deixava em casa.
Quando tudo corria bem o “Herbie” parecia sorrir com a gente! Só não nos acompanhava na cerveja porque era ele quem ia dirigir, e ele sempre foi um cara responsável.
No final da tarde, lá pelas seis e poucos, ele nos levava embora. Mas não sem antes rolar o lado B da fita dos Ramones!
Como moramos numa cidade pequena, não dá para fazer um percurso variado, então acabávamos passando pelas mesmas ruas uma porção de vezes. Devíamos ser conhecidos pela turma do Fusca marrom/cocô e não pelos nomes.
Era tudo meticulosamente calculado. Quando a fita começava a chegar no fim ele nos levava para ver se o Vitão, a lenda, estava em casa. Mesmo sabendo que já fazia uns dois anos que ele se mudara de lá, era imprescindível passar na casa dele. E esse era o sinal...
Quando isso acontecia e o “Herbie” tocava os primeiros acordes de “Rock´n roll radio”, sabíamos que era hora de ir embora. Cantávamos a plenos pulmões como uma verdadeira celebração de nossa amizade. E acho que era isso mesmo o que acontecia: uma celebração!
Nos conhecemos há mais de trinta anos e desde a adolescência saímos juntos aos sábados à tarde. Mesmo que durante os primeiros anos de nossos casamentos essa rotina tenha sido quebrada, o tempo tratou de consertá-la.

Foi com ele que fizemos nossa maior loucura da juventude! Inspirados em James Dean, resolvemos abusar da sorte e nos aventuramos pelas estradas de terra que leva a Três Pontes. Ao som de um Heavy Metal radical, aceleramos a supersônica velocidade de 60Km/h munidos de duas garrafas de yogurte de morango, de um litro, e uma bandeja de Carolinas com recheio de chocolate. Se um guarda nos pára, acho que teríamos sérios problemas...
E como foi divertido! Nadamos contra a maré! Nada de álcool, nem de velocidade! Nossa adrenalina vinha da felicidade de estarmos juntos, em perfeita harmonia. Uma amizade que só o “Herbie” testemunhou!
E foi o “Herbie” uma das poucas testemunhas do primeiro porre de minha esposa, então namorada. A pequena travou com dois Martinis, uma caipirinha e um copo de chope! Como eu andava a pé, o jeito foi levar a “bebaça” quase carregada para a casa. Mas quem apareceu no meio do caminho para nos dar uma carona?
Acertou quem respondeu: O “Herbie”. Ele estava levando o Pavão e a Paula para passear quando me viu, e percebeu que precisava me ajudar. Era um “Transmimento de pensação”, que só nós, irmãos do carango, saberíamos explicar.

Quem não foi muito fiel a ele foi o Pavão!
Em 90, ele comprou um Uno e encostou o pobre “Herbie”. Um ano depois arrebentaram o Uno e o “Herbie” voltou à posição de titular. Mas o infiel não estava contente... Em 92 surge em sua garagem um Voyage e o preterido Fusca volta ao status de reserva. Era de partir o coração vê-lo estacionado na garagem, todo empoeirado.
O ano de 94 chegou e o Voyage teve que ser vendido também. E quem surge como a Fênix?
Mas a essa altura nosso herói de quatro rodas já estava meio caduco... Como é costume por aqui, o Pavão se casou no civil num dia e no religioso no outro. Pois não é que no dia do casamento civil, às 15h30min horas, o bichinho resolveu não pegar mais! E o casório estava marcado para às 17 horas! Quem ia levar o noivo?
Foi preciso muita psicologia para fazer o menino dar o ar de sua graça. Só com a presença do seu mecânico de família ele aceitou voltar a funcionar! Acho que era ciúmes...
Mas como nada que é bom dura para sempre, um dia o “Herbie” se foi...
Por míseros R$ 900,00, em 1998, ele teve que partir. Mui raramente, fitávamos o bom velhinho pelas ruas, e nosso coração apertava. A única lembrança física que nos restava era o adesivo do “Hollywood Rock” que o Pavão fez questão de retirar. Era uma marca registrada de nós mesmos.
Não sei que fim ele levou, mas sua lembrança ainda vive em nós três. É comum recordarmos dele como um membro da turma. Relembramos das histórias que vivemos juntos e sempre arrumamos uma brecha para incluí-lo no contexto.
Se Deus me concedesse alguns desejos não materiais, um deles certamente seria rever o “Herbie”.
Adoraria refazer o mesmo percurso e ouvir a mesma fita que por tanto tempo fez de nossos sábados uma festa sadia!
O tempo passou, muita coisa mudou, inclusive nós mesmos. Engordamos, perdemos cabelo (menos eu!), casamos, nos separamos (menos eu, de novo). E até ficamos um tempo afastados uns dos outros. Mas ouve uma coisa que não mudou: nossa amizade!
A vida judiou um pouco de nós, como faz com todo mundo. Mas não perdemos aquela doce inocência que permeava nossas tardes de sábado. Ainda saímos, sempre que possível para tomar a cerveja nossa de todo sabadão, mas fica sempre a impressão de falta alguma coisa, ou alguém.
Acho que se entrássemos de novo no mesmo Fusca, e rodássemos ao som da mesma fita, passaríamos um bom tempo em silêncio. O Baixinho não conseguiria falar, o Pavão provavelmente passaria o tempo balançando a cabeça como quem diz: - “Meu Deus...”
E eu, além de anotar todas as reações em meu bloquinho de anotações mental para uma possível crônica, choraria como sempre faço nos momentos em que me sinto emocionado.
Eles ririam de mim, como sempre fizeram. Mas no final, quando o passeio terminasse, e a chave fosse retirada da ignição, terminaríamos os quatro abraçados, como irmãos que somos. E choraríamos juntos, cada um a sua maneira. Eu com lágrimas, o Pavão com o semblante meio assustado, o Baixinho quase tendo um enfarte de tanto se segurar e o “Herbie” tocando pela última vez:
- “THIS IS ROCK´N ROLL RADIO... STAY TO FOR MORE ROCK´N ROLL”

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