Você se lembra quando foi que a vida lhe apresentou à morte pela primeira vez?
Quando foi que você conheceu o sentimento de perda irreparável de alguém?
Eu me lembro!
Meu primeiro contato oficial com a morte foi quando, chegando da piscina, fui informado que o “Seu Anísio”, o padeiro, havia atropelado o Cyborg.
Cyborg era o nome do meu segundo animal de estimação: um cachorro vira-latas que mal chegou a completar um ano de idade.
Em meados da década de 70, pelo menos aqui por essas bandas, havia poucas padarias. Como a cidade era pequena, menor do que hoje, a distribuição de pães, confeitos e afins era feita pelos padeiros motorizados.
“Seu Anísio” aparecia quase todos os dias no fim da tarde e já chegava fazendo estardalhaço com sua Kombi branca. Mal apontava na ladeira (eu morava numa) e ia logo enfiando a mão na buzina.
Era sempre uma festa quando a Kombi estacionava e abria as suas “portas da esperança”. Atrás do banco do motorista estavam depositados todos os nossos sonhos!
Sim, os sonhos! Além de pão doce com cobertura de creme, havia os irresistíveis sonhos de goiabada! Polvilhados com açúcar de confeiteiro...
Quando meus pais tinham condições eu ganhava um, senão ficava só no sonho mesmo... Sonho do verbo sonhar!
Eu adorava o “Seu Anísio”! Até o fatídico dia em que o Cyborg escapou de casa e foi se enfiar debaixo da Kombi dele. Na hora em que ele deu aquela “rézinha” básica para sair... Era uma vez o Cyborg.
Chorei minha primeira perda não material com todas as lágrimas que foram possíveis e prometi que nunca mais teria um bicho de estimação. Até que apareceram o Chuchu, o Cocó, o Chaninho, o Kiss...
Mas a primeira vez que chorei a perda de um ser humano querido foi quando da inesperada morte do César, o Césão, que nos deixou ao pular de cabeça no Rio Camandocaia. Pelo menos foi isso que nos disseram.
Césão trabalhava para o meu pai na microscópica fábrica de sapatos que ele tinha no porão de casa. Com o tempo passei a vê-lo como um irmão mais velho. Ou até uma referência em termos do que eu queria ser quando crescesse.
Seu velório foi na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, na esquina de casa, com missa de corpo presente. Não cheguei a ir ao sepultamento que naquela época era bem desgastante.
Como todo cemitério, o nosso também fica fora do centro da cidade. Só que, diferente de hoje em dia, o corpo era velado na casa do defunto! E de lá saíam todos, “a pé”, até o cemitério! O único que não ia andando era o morto por motivos mais do que óbvios. E o motorista do carro fúnebre, claro.
Carro era coisa de rico e pouca gente tinha. Os poucos que tinham até davam uma carona para a família do defunto não ter que ir debaixo de um sol escaldante, e vestido de preto, até o cemitério.
Lembro-me bem da extensa fila que acompanhou o cortejo do Césão. Era muita gente mesmo! Principalmente jovens, já que ele se foi aos 18 anos.
Mas o velório que mais me marcou até hoje foi o do Nono Luís.
Por sofrimento nada se compara a perda de meu avô Agenor, mas o velório do Nono foi algo de espetacular!
Mas o que pode haver de espetacular num velório? – você deve estar se perguntando.
Nada, não fosse eu descendente de italianos. E da espécie mais desgraçada que se pode haver!
O Nono bateu as botas aos 90 anos de idade, no início dos anos 80.
Eu ainda era um moleque que mal sabia para que servia um pinto, mas me lembro com riqueza de detalhes da “celebração” que foi o velório do velho!
Eu lhes digo isso não porque o Nono não era muito querido, muito pelo contrário! Pô, ele era o Nono, porca miséria! Era o patriarca da família! O dono da porcada! O que mandava prender e soltar! Enfim, o Nono era o “cara”!
Todos gostavam dele. Até meu avô que era seu genro. Se bem que eu nunca os vi abraçados...
A propósito de seu aniversário todos se reuniam na casa da minha avó, que era quem cuidava dele, e diante de uma longa e farta mesa cantavam o “Parabéns” para o Capo.
Luís De Simoni teve oito filhos que tiveram mais uma trempa de filhos que lotavam a casa da Vó Tiana quando dos aniversários de números redondos do Nono, 60, 70, 80 ,90... Nos restantes vinham só os que podiam.
Mas o que fez daquele velório uma ocasião especial?
Simples: a hora do almoço!
Italiano que se presa passa a noite chorando o morto e não arreda pé nem que a vaca tussa! Sair de lá, mesmo que de madrugada, é para as mães de crianças pequenas e para as próprias crianças. Quanto mais velho, mais resistente é “chorador de morto”! Minha avó só levantava da cadeira para ir ao banheiro ou passar a mão na cabeça da defuntada da família e fazer o sinal da cruz.
No velório do Nono, como não poderia deixar de ser, o clima era literalmente de “velório” – redundância a minha.
Nessa época a cidade já possuía o Velório Municipal, que ficava nos fundos de um de nossos hospitais, bem no centro da cidade. Eram duas salas. Dava para dois defuntos, ou mais, dependendo da demanda.
Era uma visão comovente aquela italianada toda chorando e os amigos consolando com aquela já manjada frase de velório: – “Ele descansou...”.
Até que de repente minha avó lembrou-se que “saco vazio não pára de pé”, como ela se referia a hora da bóia.
Com seu jeito Mussolínico de ser decretou: - “Célia! Passa no mercado e compra 3 quilos de bife, 2 quilos de lingüiça pura, 1 quilo de cebola, 3 quilos de batata, 5 quilos de arroz, 2 quilos de feijão, 2 quilos de macarrão, uns 4 pé de “arface”, e bastante tomate. Faz o “armoço” dessa gente e pede pro seu marido ajudá!”.
Célia é o nome de minha mãe e o marido, evidentemente, meu pai.
Mamãe trabalhou tal qual uma camela para preparar esse cardápio básico para a italianada, e como ninguém ficou sabendo que ela estava se esvaindo na cozinha, teve que fazer tudo sozinha, ou melhor, com meu pai, ou melhor, quase sozinha já que naquela época ele não manjava nada de cozinha.
E toda essa comida foi preparada em dois fogões, um normal e outro “a lenha”!
Quando tudo estava pronto minha mãe voltou para o velório e comunicou que a comida estava na mesa. Na mesa da casa de minha avó.
Só que a máfia não queria arredar pé do lugar e a solução encontrada por minha avó foi a seguinte: trazer tudo para o velório e manjar por lá mesmo!
E lá foi a Célia de novo para a cozinha! Depois de tudo devidamente acondicionado em formas de metal (aquelas de bolo), o rango foi dar um passeio na Kombi de alguém que não me lembro quem.
A visão de um bando de mulher carregando formas e mais formas de comida para dentro de um velório é, no mínimo, grotesca. Agora imaginem o cheiro da comida que passava atiçando a gula de quem havia passado à noite em claro!
Aqueles que se diziam sem fome ou sem vontade de ir até a casa da Vó Tiana para almoçar foram os primeiros a partir para a mesa! Mas, que mesa?
Havia até uma cozinha onde se costuma preparar um café, mas mesa propriamente dita...
Estamos numa sala onde se vela um corpo recém desalojado de alma! Onde conseguir uma mesa? Ainda mais para tanta gente!
O jeito foi comer em pé mesmo...
Por falta de pratos e talheres para todos foi organizado um sistema de revezamento: primeiro a velharada e as crianças, depois as mulheres e por último os homens.
Aquilo era uma visão surrealista! Houve um momento em que ninguém mais dava moral para o Nono! O povo queria era encher a pança!
Gente comendo de pé, gente sentada no chão com o prato no colo, criança filando mistura dos tios, gente do lado de fora com o prato na mão comendo tudo na base da garfada e cortando carne na dentada! Enfim, só faltou usarem a barriga do Nono como mesa!
Tudo regado a Tubaína e Sodinha! Faltou o vinho.
Eu tinha a impressão que a qualquer minuto o véio ia levantar e gritar:
- “Porca miséria! Ma que família do catso! Que farta de respeito co morto! Vê se pelo menos me faz um prato seus maledeto”.
Meu tio Célio, então um playboy, ao chegar à ceia, desculpe, ao velório quase enfartou! Da porta já sentiu o cheiro de lingüiça acebolada. Teve um chilique que só foi encerrado porque já não havia mais nada o que fazer. Pediu que pelo menos passassem um café bem forte para ver se encobria o cheiro da lingüiça. Impossível...
Por sorte, ou azar, sei lá, o Nono era o único morto do dia. Se houvesse outro na sala ao lado com certeza minha avó iria convidar os vizinhos para participar da comilança! E ia ser uma confraternização geral com todo mundo se abraçando, cantando “Che viva la bella polenta”, prometendo filho para o outro apadrinhar...
Graças ao bom Deus nessa época carro já era comum pelas bandas de cá porque o Nono foi sepultado na cidade vizinha, Serra Negra. Imagina se fosse uma década antes! Todo mundo a pé, debaixo de um puta sol e a pança cheia de lingüiça e macarrão! Iam ser um velório atrás do outro! Italiano morrendo de congestão no meio do caminho! E tome velório! Tome lingüiça!
No cemitério a ala masculina sofreu...
O Nono era um homem alto e forte. Não era gordo, mas magro é que não era.
Como os carrinhos de transportar defunto ainda não existiam por aqui, todo e qualquer morto era levado no braço até a sepultura. Imaginem só a cena daqueles italianinhos de bucho cheio, debaixo de sol e carregando um caixão que devia pesar mais de 100 quilos!
E por mais que eles se revezassem na alça do caixão eu tinha a impressão que eles iam explodir, pois estavam vermelhos e suados com aquela cara típica de quem não está mais agüentando.
E carregar o caixão sempre foi uma honraria permitida somente aos membros mais ilustres da família! Lembro que me imaginei ali no lugar daqueles homens fortes, importantes no contexto familiar, tendo a honra de transportar um ente querido. Mas meu dia chegaria. Uma das alças do caixão de minha avó Sebastiana a mim pertenceu.
E por mais respeito que eu tivesse por ela confesso que excomunguei aquelas malditas banhas da minha gorda vovó. Lembrei-me do sonho que tive naquele mesmo cemitério mais de uma década antes. Senti-me ridículo.
A propósito do velório de minha avó, a “festa” já não era tão animada.
Noventa por cento da italianada já estava enterrada quando ela se foi. E sobrou para a Tia Cida o decreto de preparar o rango da galera.
Só que dessa vez o cardápio estava bem pobre:
- “Roberto! Vá ao mercado e compra 1 quilo de mortadela, 1 quilo de presunto, 1 quilo de mussarela, um pote de margarina, 2 quilo de café e 30 pãozinho!”.
Demos azar porque minha avó morreu depois do almoço e só iria ser sepultada no outro dia pela manhã. Senão...
E dessa vez minha avó teve que dividir a sala com outro morto. Pelo menos quem passava do lado de fora achava que a família era numerosa.
Num determinado momento A Tia Cida pediu para que minha mãe convidasse a outra família para tomar um cafezinho na cozinha.
Como o Velório Municipal era novo (já devidamente instalado ao lado do cemitério) e a municipalidade é que bancava tudo, a família do morto agregado achou que era tudo por conta da prefeitura e limpou a mesa!
Minha avó deve ter rolado umas duas vezes no caixão de tanta raiva! Quando a filha do defunto viu aquela pequena ceia em cima da mesa botou a cabeça para o lado de fora e chamou o resto do seu povo anunciando que tinha até presunto e que podia comer a vontade! Lembrei do velório do Nono nessa hora.
Quando eu morrer quero que meu velório siga as tradições da família. Mas com todo o conforto da vida moderna.
Quero que contratem um Buffet! De entrada quero que seja servido canoinhas de maionese e “batatinha cozida de casamento”. E para beber uma caipirinha bem fraquinha para dar uma animada no pessoal.
O prato principal tem que ser massa! Nada de comidinha light! Muito carboidrato para a rapaziada ficar cheia de energia já que não quero saber de carrinho elétrico carregando meu corpinho. Vai ser a moda antiga: no braço!
Para beber sim, uma Coca Light e Caipiroska para meus amigos alcoólatras. Quero ver a galera trançando as pernas!
O único que não quero ver comendo porcaria é o Baixinho. Esse eu exijo que coma só uma saladinha básica. Ele anda meio gordo, sabe...
E nada de cantarolar “Che viva la bella polenta”, quero ouvir “I don´t wanna be buried, in a pat cemetary” dos Ramones. Vai ser melhor que o do Nono!
Graças a Deus já faz um bom tempo que eu não velo ninguém da minha família. Hoje, perto dos 40 anos, eu faria parte da turma que passa a madrugada chorando o morto. E ainda teria assegurado uma das alças do caixão. Não sei se eu tenho mais saco para isso...
Ainda mais nesses velórios modernos, onde impera o silêncio respeitoso. Bom mesmo foi o velório do Nono!
A galera comia e se divertia! Entre um choro e outro os “hómi” falavam de “futebor” e “mulherada” enquanto as “patroa” colocavam as fofocas familiares em dia.
Definitivamente... Já não se fazem mais velórios como antigamente...
sábado, 10 de maio de 2008
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