Era mais um fim de tarde entre amigos. Daqueles que não se tem o que fazer e ir para casa não é a melhor opção. Mamãe devia estar vendo novela e certamente exigiria seu direito à diversão depois de fazer tanta escova no cabelo das moças da redondeza.
Da turma que havia disputado o jogo de futebol em sistema “dois vira quatro acaba”, só restávamos eu e o Renato na rua. O resto já estava debaixo do chuveiro ou assistindo algum programa de fim de tarde da TV Tupi.
Renato entrou em sua casa e voltou rapidinho trazendo algo que até então eu só havia ouvido falar ou visto de longe: um gravador portátil! Coisa de última geração numa época que precedeu aos “3 em 1”. MP3 não se falava nem em filmes de ficção.
A princípio meu amigo colocou uma fita qualquer com uma música qualquer, que de tão importante não me lembro. Mas o que me atiçava à curiosidade era o gravador. Meu Tio Roberto havia dito que esse aparelho tinha um microfone embutido que era para gravar as músicas da rádio. A rádio à qual ele se referia era a Difusora de Amparo, única estação audível por estas bandas. As outras estações só serviam para sintonizar jogos de futebol e ainda assim há de se levar em conta o esforço e a paciência para que isso acontecesse já que o sinal sumia tão de repente quanto aparecia. Era preciso dedos de cetim para voltar a sintonizá-la sem perder completamente o sinal.
Não demorou muito e o Renato decidiu mudar minha vida. Entrou e saiu como um jato de sua casa, trazendo em suas mãos uma fita K7 cheia de rabiscos de canetinha Sylvapen.
Tal qual um bobo fiquei em silêncio vendo meu herói trocar as fitas e nem me arrisquei a perguntar quem era o cantor, mesmo porque minha então pífia cultura musical se resumia as trilhas musicais das novelas da TV Globo.
Achava o máximo a habilidade que ele tinha para manusear o gravador. Era como se aquilo já fizesse parte de seu cotidiano. Para mim, que possuía como bem mais valoroso uma bola de capotão verde e branca ganha do Tio Célio, aquele equipamento era algo inatingível. Não fazia idéia da função daquela “chavinha” que selecionava “On e Off” (palavras que levei alguns anos para descobrir o significado)
Eu ainda não sabia disso, mas a frase que ouvi após o Renato ter apertado as teclas Play e Rec simultaneamente, seriam repetidas ao longo de minha vida sempre que algum engraçadinho sem dons jornalísticos mirasse sua câmera de vídeo em minha direção: “Fala alguma coisa aí!”.
Cansei de me utilizar do artifício mais comum entre os tímidos que é virar para o psedo-repórter e responder: “Falar o quê?” – seguido de um sorriso amarelo e uma fuga simulada para fazer alguma coisa que tem que parecer importante para que ninguém pense que você tem apenas vergonha.
Só que naquele momento essa tática de fuga ainda não era popular e eu não tinha a menor idéia do que ia acontecer a seguir.
Fiquei estático, olhando para aquele gravador preto e assustador nas mãos do Renato, sem saber o que fazer. Eu senti medo! Isso mesmo, medo!
Olhei para meu algoz sem saber o que falar. Emudeci como se estivesse em choque enquanto ele, percebendo meu desespero aborígine, exercitava seu sadismo me incitando a dizer alguma coisa.
- “Como assim? O quê que eu tenho que falar? Não... Fala você mesmo! Eu falo outro dia...”.
Minhas tentativas de fuga nada adiantavam e ele insistia cada vez com maior veemência. Quando eu me preparava para sair correndo o ouvi dizer para eu imitar alguma coisa.
Sentindo-me acuado resolvi ceder a seus pedidos e fiz a primeira coisa que me veio à cabeça: imitei o Pato Donald!
Não que eu fosse um autêntico imitador de Pato Donald, muito pelo contrário. Aquilo foi simplesmente a primeira coisa que me veio à cabeça.
Para completar o estrago eu ainda inventei de dizer: “Agora é sua vez!”, e ele não pensou duas vezes antes de me esculachar:
- “Esse foi o Afonso... A bichinha da Rua Carlos Gomes!!! Hahahaha!”
Maldito Renato! Como ele se atreveu a falar uma coisa daquelas?
Passei alguns dias magoado com ele. Naquele tempo eu ainda me
Importava com o marketing de minha masculinidade e não admitia que alguém me chamasse de bicha! Não brigava com ninguém, mas também não deixava barato: xingava também!
Era chegada a hora da verdade! Quando meu amigo anunciou que ia colocar a gravação para que nós ouvíssemos senti aquele calafrio típico dos fracos e inseguros. Era a primeira vez que eu ouviria minha própria voz!
Aquela caixa preta coberta com uma capa de couro marrom guardava dentro dela uma prova sonora de minha existência. Minha voz estava materializada em um pedaço de fita plástica, acondicionada num invólucro branco rabiscado com caneta hidrocor!
O tempo corria devagar e cada segundo parecia uma eternidade. Renato manuseava as teclas bem devagar para que a tortura fosse completa. “Stop, Reverse, Play”, era agora!
O primeiro som que ouvi foi o do ambiente, nenhuma prova de existência humana era ouvida. Até que a voz inconfundível de meu amigo se fez presente:
- “Fala alguma coisa aí!” - foi o que ouvi de novo.
Em seguida alguém, que parecia meio perdido respondia: “Falar o quê?
Como assim? O quê que eu tenho que falar? Não... Fala você mesmo! Eu falo outro dia...”.
Enquanto isso eu esperava pela minha imitação de Pato Donald que
demorou um pouco a chegar. E quando chegou senti uma vergonha enorme de mim mesmo.
Não acreditei quando ouvi aquela coisa ridícula tentando ser personagem de Walt Disney! E eu que pensava que sabia imitar o pato direitinho...
Sem perceber eu estava me atendo à imitação sem notar que aquele sujeito perdido em palavras era eu. E ainda tinha aquela bichinha da Rua Carlos Gomes que me incomodava!
Ainda ouvimos aquela gravação umas duas vezes e só então pude ter uma noção de como era o tom de minha voz. Parecia que eu não era eu. Não me reconheci ali! Achava que minha voz era mais suave, menos grossa, mais bonita.
Voltei para casa decepcionado comigo mesmo, como se minhas cordas vocais fossem deficientes, e como se essa deficiência fosse culpa minha!
Cheguei em casa com o dia perdido e tentando falar de forma diferente para que as pessoas não percebessem que eu tinha a voz mais horrível do mundo!
Dormi triste...
E preocupado.
Afinal o Renato havia dito que aquilo não podia mais ser desgravado e ficaria ali, para sempre, constado que eu era “A bichinha da Rua Carlos Gomes”.
sábado, 10 de maio de 2008
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