sábado, 10 de maio de 2008

“RUA DE CIMA CONTRA RUA DE BAIXO NA RUA DO MEIO”

Outro dia eu passei em frente a um clube de futebol ”Society” aqui da cidade e vi uma cena que me chocou bastante: um bando de garotos de no máximo dez anos se confrontavam sob as luzes dos refletores halógenos!
Por que isso me chocou?
Simples. Porque essa geração vai morrer sem saber o que é uma pelada de rua! Não falo de nenhuma menina dada que resolveu tirar a roupa na frente de todo mundo. Esse tipo de pelada pornográfica essa garotada já deve estar de saco cheio de ver na internet. Eu falo de um jogo de futebol que não se vê mais nos dias de hoje.
Hoje ainda existem pequenos focos românticos que perpetuam essa cultura sob o novo status de “Street Soccer”. São geralmente vistos em ruas da periferia das cidades ou em uma remota vila dos confins desse Brasil anônimo que existe dentro do próprio Brasil.
“Street Soccer” nada mais é do que nosso antigo e saudoso “Cinco vira, Dez acaba”, jogado no meio da rua, sem goleiro e sem traves, apenas com um par de chinelos Havaianas demarcando o que seriam as balizas ou traves. Também não havia juiz para apitar a peleja, os lances mais polêmicos eram decididos entre os donos dos times, geralmente os meninos mais fortes e briguentos, que costumavam decidir se era pênalti ou não, depois de uma meia dúzia de tapas que ninguém ousava apartar.
Quando alguém anunciava: “amanhã vai ter jogo contra!”, significava que o time de alguma rua rival havia desafiado o outro para uma partida de futebol.
Isso nos deixava animados e ansiosos. Como verdadeiros profissionais, passávamos o restante do dia treinando, o que significava ficar jogando bola o resto do dia, até que o último pai chamasse o filho para dentro de casa. E isso geralmente acontecia por volta das 22 horas. Era só ouvir seu nome em voz alta que a gente sabia que estava na hora de ir para a cama. O único que não ouvia a voz do pai era o Fabian. O Raul, seu pai, costumava dar um assobio tão alto e com uma melodia tão diferenciada que todos já sabiam de quem se tratava. Chorei sua morte aos meus dezoito anos. Era um corintiano arretado esse Raul!

Houve um jogo que me marcou bastante e que guardo na memória com muita saudade.
Eu ainda era muito pequeno, devia ter no máximo uns sete anos de idade, e fazia parte da “Turma do café com leite”.
“Café com leite” era aquele garoto, que não tinha idade para brincar com os grandões, mas como vivíamos em uma democracia infanto juvenil (só entre as crianças, pois entre os adultos o país já vivia a Era Geisel), eles nos deixavam participar da farra. A diferença era que nós não “apitávamos” nada. Era como se não existíssemos para as regras das brincadeiras. Por exemplo: numa brincadeira de pega-pega os grandões tentavam pegar todo mundo, e nós também corríamos deles, mas se alguém nos pegasse não acontecia nada, pois éramos “café com leite”.
No futebol nossos gols também valiam, mas isso raramente acontecia, pois eles nunca passavam a bola para os pirralhos. Ficávamos com as sobras e geralmente tínhamos que passar a bola para um grandão o mais rápido possível sob pena de levar um “croc” na cabeça!
Naquele dia aconteceu da mesma forma. Como o jogo era jogado com dez para cada lado e nosso time estava incompleto, foi preciso apelar para a “turma do café com leite” para completar a escalação.
O time da Rua Carlos Gomes (a rua de cima) iria enfrentar o time da Rua Albino Alves (a rua de baixo) na Rua Antônio Prado (a rua do meio, portanto, campo neutro).
O “point” escolhido foi em frente da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, que era o mais iluminado da rua e o que tinha menos casas por perto. Uma das traves ficava em frente à casa do “Seu Tácito” que não ligava muito para o barulho, e a outra, distante uns 25 metros, ficava justamente na frente da casa do “Véio Tomate”. Não me lembro o seu nome, mas ele era aquela figura lendária que quase toda rua tem: o velho chato e rabugento. Vi com os olhos cheios d água ele furar uma bola de plástico que eu cuidava com muito carinho quando, o Charles chutou-a para cima e acabou aterrizando sobre as roseiras do velho.
Impossível esquecer aquela figura grisalha e já bastante enrugada de camiseta de alça branca e cueca samba canção igualmente branca, assassinando minha bola de futebol, no meio da rua. Ele vociferava uns grunhidos que, em termos fonéticos, se aproxima muito de um “pohpohpohpoh!”. Ninguém entendia absolutamente nada, mas pelo tom da gritaria sabíamos que ele não nos amava.
Eu jogava(?) pela Rua Carlos Gomes e fazia a função típica de um “café com leite”, ou seja, nada. Ou melhor, corria atrás da bola com todos os “cafés com leite” do meu time, a uma distância segura dos ponta-pés dos grandões e do lado oposto dos “cafés com leite” do adversário. Ficávamos esperando uma bola espirrada para enfiar o pé na redonda, o que já era uma vitória!
Nosso esquadrão era formado por Valdir (o dono do time); Zé Luís; Zé Antônio; Jão; Charles (recém promovido ao time de cima) e Beto (que era da rua acima da nossa e que não tinha time por falta de quorum).
Completava o time os “Café com leite”: Fabian; Lulli; Renato; Israel; Alexandre; e eu.
Como só dez podiam jogar, os mais pernas de pau ficavam na reserva e entravam e saiam a cada dois gols. No caso, os pernas de pau eram o Alexandre e o Lulli que não gostavam muito de futebol, mas adoravam estar no meio da farra.
Não me lembro da escalação do time da Rua Albino Alves. Os poucos que não me fogem a memória são: Cosmo; Gerson; Bié e o Fábio.

O jogo aconteceu à noite para que todos pudessem estar presentes já que parte estudava de manhã e parte à tarde. Tinha até torcida feminina! No nosso caso a Nadia, a Soraya, a Silmara, a Fernanda e outras que não me lembro.
O jogo começou e os gols foram saindo naturalmente. Aliás, o que não faltava nesses jogos eram gols! Eram muitos e de todo jeito: de placa, de cabeça, de canela, de joelho...
Como sempre, tinham as brigas. A única que me lembro nesse jogo foi do Valdir contra o Cosmo por causa de um escanteio. O resto da peleja era recheada por xingamentos dos mais variados.
A partida foi uma das mais equilibradas que já vi, com os nervos à flor da pele e os gols saindo aos montes. Éramos rivais e isso esquentava ainda mais o clima. Até briga de “café com leite” teve. Não me lembro quem contra quem, só me recordo de ver o Renato subindo para sua casa aos berros.
Quem perdesse ia ter que agüentar a gozação por muito tempo na escola, pois ninguém se atreveria a passar na outra rua depois de um jogo. Fatalmente os derrotados iriam espancar os vencedores por puro despeito. E isso era bem comum de acontecer. A paz só voltava semanas depois. Até o próximo jogo...
A coisa estava pegando fogo, a bola não parava um minuto, já que não havia lateral, só escanteios e tiros de meta. Valia até tabela com a sarjeta. E foi exatamente uma tabela involuntária que decidiu a partida.
O placar estava empatado em nove gols para cada lado e o próximo tento decidiria o futuro daqueles guerreiros heróicos que, de pés descalços, lutavam para não serem as vítimas das gozações da próxima semana. Era comum ver champelas de dedões serem arrancadas ao se chutarem o calçamento. Mesmo assim o jogo não parava, nem o ferido!
O lance derradeiro se deu pela esquerda do gol da casa do “Véio Tomate”. Zé Luís avançou com a bola e quando estava quase de frente com a meta adversária foi interpelado pelo Fábio que deu um chutão para o lado. A bola bateu com tanta força na sarjeta, que voltou para a boca do gol vazio. Para que ela entrasse era preciso que alguém a empurrasse para dentro.
De repente o mundo parou como num filme. De frente para o gol vazio estavam apenas a bola e um “café com leite” da Rua Carlos Gomes. Um menino magricela descalço e sem camisa estava prestes a virar herói. Esse menino franzino e tímido era este que vos relata emocionado esse momento tão sublime que é o gol. Só os homens sabem a importância desse momento. Só tendo sido menino um dia para saber do significado mágico de se decidir uma partida como aquela.
Fazer aquele gol significava ser respeitado por pelo menos alguns dias até mesmo entre os grandões. Significava que se alguém quisesse brigar com ele, teria a proteção da ala mais forte da turma. Significava a possibilidade de estar escalado para o próximo jogo, sem precisar tirar a sorte no “dois ou um”.
Imagine o mundo parado, você de frente para o gol vazio e uma dezena de vozes gritando como que dentro de um cano: “Chuta! Chutaaaa!!!”
E o menino chutou. Com categoria, de peito de pé, como só os meninos do Brasil sabem fazer nessa idade.
Só ouvi os berros de “GOOOOOL” vindo de todos os lados e confesso que senti vontade de chorar. Só não o fiz porque seria um atestado de “bunda mole” naquela época.
Fui carregado nos ombros da galera, enquanto o Valdir e o Cosmo desempatavam a briga que haviam começado durante o jogo.
Tomado por uma alegria indescritível fui um dos últimos a voltar para a casa naquela noite. Contei com euforia para meus pais o feito histórico que acabara de protagonizar e dormi sabendo que o amanhã seria glorioso. Imaginei-me fazendo isso no Morumbi com a camisa do São Paulo, recebendo um passe do Serginho Chulapa!
Dormi o sono dos justos. Feliz por ter entrado para a galeria dos heróis da rua e orgulhoso por poder ter feito um simples gol, que pode parecer banal para alguns, mas que, para quem já jogou uma partida de “cinco vira, dez acaba”, significa a glória suprema. O significado mais romântico do que é jogar futebol.

A propósito, fiquei um mês sem passar pela Rua Albino Alves, com medo de ser espancado.
Muitos dos protagonistas daquele episódio são meus amigos até hoje. Alguns se perderam pela vida sem dar notícia, outros se tornaram engenheiros, professores, teve quem virou radialista, eletricista, e até sócio de puteiro! Nenhum deles virou profissional da bola, isso tenho certeza.
Cheguei a morar durante anos na Albino Alves, mas já não haviam mais essas peladas de rua. Outrora adversários, hoje “aqueles amigos”, que jogavam contra mim e minha turma.
Um dia deixei de ser “café com leite” e joguei “contra”, como titular. Mas não tinha a mesma graça. O bom foi ser um herói “café com leite”. O time da Rua Albino Alves acabou e nossos rivais passaram a ser a turma do Tostão, do largo da Santa Cruz. O dono do time e briguento da vez era o Charles e os “cafés com leite’ mudaram de nome. Um deles, o Rogério, é mecânico de confiança de meu carro.
Quando passo pela Rua Antônio Prado remeto-me àquela noite de glória e me encho de orgulho por dentro.
O futebol nunca mais foi o mesmo depois daquele jogo. Pelo menos para aquele magricela que sonhou um dia em ser centro-avante do São Paulo e hoje, entre um choque elétrico e outro, escreve para ele mesmo, sonhando ver suas histórias materializadas em forma de livro.

Bons tempos aqueles...

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